A canoa yamana

 

Estou lendo o livro Transpatagônia - Pumas não comem ciclistas, do Guilherme Cavallari. Um livro escrito em uma expedição de seis meses de bicicleta/trekking pela patagônia chilena, argentina e pela terra do fogo (em breve resumo por aqui).

O fato é que Cavallari, um apaixonado por boas leituras e aventuras, não só descreve a viagem que fez como explica a história da região que visita. Devorando as páginas dessa agradável leitura, atento a cada palavra me deparei com o nome de Thomas Bridge. Reconheci, sem lembrar de onde. Ansioso corri o olho vasculhando a página e após alguns segundos me controlei voltando a leitura. Mais a frente encontrei o que procurava. Estância Harberton

Estância Harberton

A Estância Harberton é uma fazenda localizada no canal de Beagle, cerca de 60 km à leste de Ushuaia. Thomas Brigde fundara a Estância no século XIX. Atualmente ela é um dos passeios turísticos oferecidos em Ushuaia. Seus principais atrativo são uma visitada a Isla Martilo, mais conhecida como pinguinera (onde se observa pinguis de magalhães e pinguins-rei), o pequeno museu Acatushun, hospedagem para turista e um restaurante.

Chegamos na Estância Harbeton pelo leste, no início de uma prazerosa tarde. Nós estávamos velejando desde Puerto Santa Cruz. A única parada tinha sido em Isla de los Estados, logo já eram 10 dias comendo macarrão e enlatado. Todos à bordo esperavam por uma refeição diferente quando num livro da biblioteca do barco identificamos a presença da Estância e o viés turístico que ela tinha adotado.

Ancoramos em uma enseada tranquila, ansiosos por encontrar o restaurante. Colocamos o bote inflável na água e rapidamente seguimos para terra. Eramos seis pessoas e como a caminhada era relativamente longa, fomos naturalmente nos afastando. Segui com o Zé e entre conversas e risadas avistamos de longe a sede da fazenda.

Chegando na estância fomos apresentados às instalações e ao descobrir a existência do restaurante seguimos direto para lá. Sem nem pensar muito escolhemos o churrasco de cordeiro, acompanhado de cerveja Beagle. Diversão garantida a galera começou a se organizar para retornar ao barco quando apareceu um funcionário brasileiro que estava trabalhando por ali na temporada de verão.estancia harberton

Canoa Yamana

Nem passava pela minha cabeça conhecer um brasileiro antes de chegar a Ushuaia, nosso destino final. Rafael era um gaúcho do interior do Rio Grande do Sul. Saíra de sua terra natal no ano anterior prometendo dar a volta na América do Sul em sua motocicleta de 150 cilindradas. Se encantou pela Terra do Fogo e decidiu ficar uns tempos por ali, quando encontrou trabalho na fazenda Harberton.

Entusiasta da vida outdoor, adorava caminhar pelas terras em todo tempo livre que dispunha. Foi assim que um belo dia encontrou uma canoa yamana abandonada sob uma árvore. Os Yamanas, indíos que habitaram a região da Terra do Fogo bem antes da chegada de Fernão de Magalhães (descobridor do Estreito de Magalhães). Utilizavam gordura de foca para manter a pele aquecida e eram especialistas em pesca e navegação com canoas. Ao achar a canoa yamana Rafael decidiu que queria atravessar o Canal de Beagle até a ilha de Navarrino remando. Pelos estudos dele, do ponto de partida, na Estância, até a ilha chilena daria cerca de 5 km.

Já alimentado, sem vontade de voltar para o veleiro e interessado na canoa yamana eu quis saber mais. Curioso e sentindo o cheiro de aventura pedi para acompanhá-lo até a canoa.

- Bem, a canoa está a aproximadamente 3 horas daqui de onde estamos. O veleiro está a 1 hora e meia. Faltam 4 horas e meia para escurecer. Não acho que dê tempo de você ir comigo até a canoa.

- E se formos andando rápido e voltarmos remando? Podemos remar até onde está o veleiro?

- Nesse caso eu acho que conseguimos chegar lá em 2 horas e voltar em 1 hora, talvez nem isso. Porque caminhando precisamos fazer um desvio e remando podemos atravessar de uma península para a outra.

A aventura

Mais que animado me despedi da galera do veleiro dizendo que chegaria remando e que não se preocupassem comigo.

Naquela época do ano o sol se põe bem tarde naquela região. próximo a dez horas da noite. Seguimos caminhando pela vegetação característica. Árvores retorcidas pelo vento emolduravam a paisagem me lembrando filmes onde as árvores ganham vida. A conversa com o Rafael era boa e eu identificava mais semelhança com ele do que com a galera do barco. Na verdade, eu acho que naquele momento eu decidia que não queria mais viajar dependendo da decisão de terceiros. Conversamos sobre isso, sobre liberdade e sobre como o contato da natureza agrega qualidade de vida à rotina. Quando percebi já estávamos na orla do canal de Beagle pisando na areia batida de uma praia sem graça. A essa hora já estava nublado e o calor do sol começava a fazer falta. Mais uns poucos minutos e encontramos a canoa yamana na areia a alguns metros da água.

Eu nunca tinha visto uma canoa indígena pessoalmente, mas nas fotos e vídeos as canoas não pareciam tão primitivas quanto aquele tronco de madeira escavado no meio. Não acreditei muito que aquilo era capaz de nos conduzir, mas confiei no Rafael que me disse já tê-la remado duas vezes após a reforma que ele mesmo fez. Sem exitar canoa para água.

Canoa na água

Com esforço puxamos a canoa pela areia colocando na água. Até então eu já tinha remado bote de rafting e duck (uma espécie de caiaque inflável muito utilizado em corridas de aventura).O objetivo era remar paralelo à praia até um ponto em que um rio desaguava no mar. Cruzar esse local entrando em uma pequena enseada e seguir contornando a margem.

Rafael subiu na canoa e se posicionou mais atrás, além de remar ele faria o leme. Me indicou onde sentar e quando subi na canoa o nível da água ficou a dois dedos do limite para inundá-la. A sorte era que o mar era uma verdadeira lagoa, ou melhor, uma piscina. Apenas uma leve marola a cada onda ameaçava inundar a canoa. Começamos a remar sem muita sincronia e a tarefa não estava muito fácil.

Prevendo que não ia funcionar paramos e decidimos revezar. Apenas um remaria e o outro seguiria caminhando pela areia. Assim o fizemos e avançamos mais alguns metros. Porém, em dado momento teríamos que cruzar a foz de um rio que desaguava no mar. O movimento das águas mais intenso iria requerer que estivéssemos sincronizados. Decidimos então novamente tentar remar em dupla. Foi quando o pior aconteceu.

Na marola seguinte eu me desestabilizei, a canoa se inclinou, entrou um pouco de água e no próximo movimento ela virou. O horário já avançado, um vento que começava a soprar e a temperatura que não estava agradável contribuíram para um cenário desagradável.

Molhados, com frio e com um longo caminho pela frente

Rafael me olhou com cara de poucos amigos, pegou em um lado na canoa indicando para que a tirássemos da água e assim fizemos terminando de molhar o que ainda não tinha molhado. Sem lanterna, sem comida, sem água, sem roupas secas e quase sem moral teríamos que retornar pelo longo caminho a pé degustando o sentimento de insucesso.

Sorri contido me lembrando do episódio de Praga, pensei no Show de Truman e tive certeza que tudo daria certo. Mas não seria fácil. Tentei argumentar que agora a canoa estava mais perto do local de partida para o objetivo dele, mas não o animou muito. Percebi que não era mais hora de bate-papo e parei de conversa. Tiramos a canoa na água e seguimos para a trilha.canoa-yamana-mochileiro-2

Frio, Zé e relógio

Saímos andando ainda mais rápido. O trecho mais próximo a praia onde naufragamos era o pior de se orientar, depois tinha uma pequena estrada de terra que não teria problema estar escuro. Foi assim que apertando o passo conseguimos estar na estrada quando a noite caiu.

A visibilidade era pouca, mas a medida que fomos nos acostumando ficou tranquilo de caminhar. O problema passou a ser o frio. A solução, caminhar rápido. Foi assim que não demoramos a chegar na enseada onde o veleiro estava ancorado.

Me despedi do gaúcho feliz de estar "em casa" e ele feliz de voltar pra Estância dele. Caminhei sozinho até a margem e tive um insight:

Faltava chegar no veleiro

- Como é que eu vou chegar no barco?

O bote estava no veleiro. A galera chegou sabendo que eu chegaria remando, logo não tinha como eu ir da margem ao barco. Olhei para um lado, para o outro e não tive dúvidas. Enchi o peito e gritei o mais alto que podia: - Zééééé!!!!

Nada.

- Zééééééééé!!!!

Nada. Nem perdi mais tempo. Sem caminhar há alguns minutos o frio já me pegava. Tirei as botas, as meias húmidas, toda roupa molhada, fiz uma cama de galhos secos e deitei me cobrindo com a jaqueta da terceira camada. Sabia que não era o ideal mas ia amenizar meu sofrimento. De 15 em 15 minutos eu gritava pelo Zé. Nem sequer movia a cabeça. Deitado como estava chamava por meu amigo na esperança de ser resgatado. Com o frio eu não conseguia dormir, mas também não conseguia ficar triste. Gargalhava com a furada na qual tinha me metido e torcia pelo amanhecer.

Quando o céu começava a clarear, minutos após outro grito de Zé ouvi, incrédulo, uma tentativa de funcionar o motor do bote. Saltei numa animação juvenil e vi o Zé tentando fazer o bote andar. Foram mais algumas dezenas de tentativas até que o ronco do motor anunciou o fim do meu "castigo" =D. Chegando na margem, pela expressão do Zé ao me olhar, eu conseguir imaginar a minha imagem de derrota: descalço, com os pés roxos, segurando minhas tralhas numa mão, acenando com a outra e sorrindo com a certeza de acalentar os pés e mastigar algo.

Papo de mochileiro

canoa yamanaNo barco, coloquei uma roupa seca, esquentei um balde de água, mergulhei meus pés, peguei um pacote de biscoito da vaquinha e um chá quente. Ainda sorrindo contei e recontei a minha "epópeia" para a tripulação. Entre gargalhadas e brincadeiras, mais uma vez escutei:

- Caraca Edinho, só você mesmo!

No fundo eu acho que sabia que essa história ia dar zebra. Mas já não aguentava mais o clima do barco. Queria explorar e descobrir novos horizontes. Analisei o que poderia dar errado e julguei que no pior dos cenários seria tranquilo resolver. Não tive dúvidas e o resultado, não esperado, foi um bom papo de mochileiro.