O que é Ultra Trail Run
Ultra Trail Run é uma modalidade esportiva que consiste em correr e andar por trilhas percorrendo longas distâncias. Também é conhecida no Brasil como corrida de montanha. Uma das principais diferencas observadas pelos corredores adeptos dessa modalidade é a diminuição do impacto nas articulações, fruto da troca do asfalto pelos terrenos naturais como terra, areia, grama e pedras. Outro aspecto que os corredores destacam são os visuais incriveis e o contato com a natureza que o trail run proporciona. E na Eslovenia o visual era incrível.
Atualmente o sonho de 9 entre 10 ultra runners eh correr o Ultra Trail Du Mont Blanc. O UTMB está para o Ultra Trail Run como a prova de Kona está para o Ironman. Para correr o UTMB, assim como o Iron de Kona, é preciso se qualificar. A diferença é que além de somar pontos existe um sorteio para concorrer por uma vaguinha na linha de largada em Chamonix, na França.
O corredor precisa ter 9 pontos, adquiridos em 3 provas no período de até 2 anos. Cada prova recebe uma pontuação de acordo com a distância e a variação altimétrica do seu percurso. Para exemplificar temos: a Half Mision, uma prova no Brasil, na regiao da Serra Fina, de 77km com 4610m de subida (acumulado), que vale 2 pontos; a SLO 100, uma prova na Eslovenia, nas proximidades da cidade de Postojna, com 111 km e variacao de 4900, que vale 3 pontos; e a La Mision, uma prova na Argentina, em Vila La Angostura, uma pequena cidade perto de Bariloche, com 160 km e variacao de 8500 m, que vale 4 pontos. Mais detalhes sobre provas que qualificam para o Ultra Trail du Mont Blanc podem ser vistos aqui.
Eslovenia
A ideia de correr na Eslovenia surgiu na procura por uma prova de 3 pontos. Eu havia me inscrito para o sorteio do UTMB para correr em 2015. Ao não ser sorteado e ao descobrir a mudança da regra para 2016 (até o ano passado cada corredor precisava de 8 pontos, agora são necessário 9 pontos) comecei a procurar uma prova que fosse em algum país que eu ainda não tivesse visitado. Assim encontrei a SLO 100. Uma prova de ultra trail run de 110km na cidade Eslovena de Postojna. Para evitar o jet lag e me aclimatar decidi chegar 10 dias antes e viajar pelo país.
Como chegar
A Eslovenia é um país “novo”. Era integrante da Ex-Iuguslávia até 1991, ano de sua independència. Localizado na Europa Central, faz fronteira com Itália no oeste, Austria no norte, Hungria no leste e Croácia ao sul. Apesar te ter aeroporto internacional, a maneira mais econômica para chegar vindo do Brasil é voar para Veneza e de lá pegar um transfer do GoOpti.
Algumas atrações da Eslovenia
Castelos – O país tem belíssimos castelos, merecendo destaque: o castelo da capital Ljubljana, reformado nos últimos anos, mescla o novo e o velho de uma maneira muito interessante; o castelo de Bled, no norte, localizado à beira do lago, tem um visual muito bonito; e o castelo de Predjama, construído no meio da rocha.
Cavernas Uma das mais famosas cavernas do mundo a Caverna de Postojna recebe milhares de visitantes por ano. Possui um trem que percorre suas diversas galerias. Existe tambem a Caverna de Škocjan, localizade no Parque de mesmo nome, que também é muito bonita.
Cidades Históricas – A Eslovênia é um país pequeno, com cerca de 2 milhões de habitantes. As cidades são pequenas e existem muitas vilas, interligadas por pequenas estradas. Passear por essas estradas é conhecer uma infinidade de belíssimos landscapes. Uma verdadeira viagem no tempo e na história.
SLO 100
Não tinha como estar melhor aclimatado para a SLO100. Após 10 dias viajando pela Eslovênia e pela Croácia meu organismo já tinha se adaptado ao fuso horário e ao ar mais seco que o do Brasil. Acordei por volta de 8 horas, olhei para um lado, para o outro e fechei os olhos de novo. Decidi conversar comigo mesmo alguns minutos e refletir na preparação para esta prova. Claro que não foi perfeita, como todo atleta acredita não ter sido. Mas eu tinha certeza que nunca me preparara tão bem pra nenhuma atividade. Saí da cama com a certeza de que ia fazer o meu melhor e iria me divertir. Antes do café conferi o checklist: meia e meia de compressão, cueca, calça, camisa, buff e luva; relógio e celular carregados; apito, kit primeiros socorros e géis; jaqueta gore-tex, óculos e carregador portátil. Tudo pronto! Tomei um copo de café e lembrei que não comprara nada pra comer. Não acreditei. Olhei no relógio e me lembrei que pelo horário da largada, meio-dia, o melhor seria almoçar algo por volta das 10 da manhã. Pronto, macarrão alho e óleo e estava pronto pra largada.
Cheguei na praça principal de Postojna após uma caminhada de 10 minutinhos e milhares de olhares curiosos. Ainda sem entender muito bem os últimos detalhes da prova vi se aproximar uma repórter local, sem entender muito um brasileiro por ali:
– Não! – risos.
– Você veio só para a prova? – perguntou curiosa.
– Sim! – mais risos.
– Porque? – ainda mais curiosa.
– Estava pesquisando por uma prova que qualificasse para o Ultra Trail du Mont Blanc com 3 pontos e ao encontrar essa prova decidi correr em um país que não conhecesse ainda.
– Nossa! Que interessante. Então você planeja conhecer a Eslovênia após a prova?
– Na verdade não. Cheguei dez dias antes para me aclimatar e viajei pela Eslovenia e Croácia. Dois países lindos que gostei muito.
A entrevista foi encerrada pelo briefing que iniciava. Estava na hora. Ia começar a brincadeira.
Alinhamos na linha de largada e pontualmente às 12:00 iniciamos a SLO 100. Os primeiros 9km eram todos de subida, Javornik era o nome da montanha. Saímos de Postojna com 400m de altitude para pouco mais que 1200m. Lembrei do treino que fiz com a minha Bia e alguns amigos na Travessia do Rancho Caído. Tinha percorrido aproximadamente isso, na mesma variação. Me acostumando com o terreno, caminhando rápido com o auxílio dos bastões me surpreendi ao superar a distância em menos de 2 horas. O planejamento inicial era fazê-lo em 3. Lembrei da minha treinadora Vivi dizendo para respeitar meu corpo mas para não acoxambrar. Confiei nela. Deixei o planejamento de lado e comecei a escutar meu organismo. A descida do Javornik foi bem técnica, 2km descendo até os 600m de altitude, entre pedras e barro, com uma garoa fininha que não estava das mais agradáveis.
Após superar o Javornik, corremos por uma estradinha de terra até atingir uma região plana de fazendas. Um cenário lindo. Me lembrei dos filmes da Segunda Grande Guerra e por coincidência estava tendo um exercício conjunto dos exércitos da OTAN, nesse momento da prova comecei a escutar alguns aviões e explosões de granadas e me senti na guerra! Hahahaha
Mas a diversão durou pouco. Passaram-se alguns segundos e a segunda montanha estava lá! Silvnica com pouco mais de 1000m. Quando estava chegando no cume o fotografo me disse que não precisava sorrir naquela parte, ele sabia que tinha sido duro. Disse que brasileiros sorriem a todo momento. E foi uma resposta que fez nós dois e os demais presentes sorrirem. Uma pitada de sal, recompletada a água e outra descida técnica e a parte da frente da coxa começou a questionar toda aquela velocidade. Mas como a distância do downhill não era tão grande foi suportável. Após alguns km de sobe e desce cheguei até a igreja do Krizna Gora com a água no limite, com a certeza de encontrar o ponto de rehidratação. Que decepção. Não estava lá. Sem acreditar que aquilo estava acontecendo comecei a decida quando após a curva a melhor das surpresas! Tinha o ponto sim e tava cheio de gente animada! Que astral da galera do Staff! Era impossível não ser contagiado por tamanha energia. Após aquele ponto o caminho tinha uma pequena subida e bastante descida e planos. Foi aí que aproveitei os treinos da Vivi. Soquei a bota e cheguei destruído no Kozarisce. Minha perna esquerda doía bastante, principalmente na região do adutor, o que me preocupava para a subida do ponto mais alto da prova. O PC do Kozarisce era o principal. Lá receberíamos nossa sacola de reposição. Enquanto esperava encontrarem a minha recebi um risoto delicioso, que até agora me arrependo de só ter conseguido comer duas garfadas, e recebi também a notícia que tinha uma massagista dando uma moral pros atletas. Não acreditei. Minha perna esquerda foi salva e após uma confusão danada a sacola foi encontrada e assim segui rumo ao Sneznik, a montanha mais alta da região com 1793m de altitude.
A noite tinha um clima agradável, não fazia muito frio. A única mudança com relação a parte diurna foi que tampei as orelhas com o buff e calcei as luvas. Porém, ao sair da floresta e começar a subir a encosta de pedra o vento soprou forte alertando para o uso da jaqueta de goretex e assim, passo-a-passo cheguei ao cume do Sneznik. O PC era um abrigo de montanha, fui recepcionado por um cachorro que parecia um lobo e encontrei uma galera muito animada bebendo algumas cervejas esperando pelos corredores. Sinceramente, que vontade de ficar ali com eles. Aceitei um gole de chá quente e saí para o meu sacríficio. A descida do Sneznik veio acompanhada de Morfeu. Travei uma verdadeira batalha contra o sono. Após onze horas de prova eu chegava no ponto alto do esporte de endurance. O momento que a gente pensa em se perguntar “O que estou fazendo aqui?”. Começa a briga afoita entre o anjo e o diabinho do subconciente. É nessa hora que essas sandices fazem sentido. A cada segundo eu queria parar e nesse mesmo segundo eu queria continuar. E os argumentos de ambos eram coerentes. Um lado me dizia que o tempo estava muito melhor do que esperava, que os 3 pontos estavam garantidos e que poderia avançar fazendo pequenas pausas para descansar. Além do mais, não fazia sentido arriscar a se machucar descendo com os reflexos reduzidos. O outro me dizia que o que não fazia sentido era atravesar o oceano, se dedicar durante 3 meses de treinamento, para na hora do teste parar para descansar. Além do que, se de fato parasse não ia saber nunca qual o melhor tempo que poderia ter feito nessa prova. E nessa briga interna eu fui descendo. Do nada parava, abaixava a cabeça tocando a testa no bastão de caminhada e sentia alongar a posterior da perna, agachava de cócoras sentindo esticar a parte da frente e saltava brigando comigo mesmo. De repente, me assustei com algo negro vindo rápido na minha direção. Saltei adotando uma posição de boa base e senti o coração pulsando forte. Descarga insana de adrenalina seguida de uma gargalhada de doer a barriga. A sombra de um galho projetada pela minha lanterna de cabeça, aliada ao meu movimento rápido parecia um animal vindo em minha direção. Despertei e corri feito um louco por uns 3 km quando de repente a lanterna focou dois pontos brilhantes. Agora sim era olho de algum animal. Meio desconfiado me aproximei e vi uma raposa correr pelo mato. O pessoal da organização da prova tinha feito tanta propaganda quanto a presença de ursos, tinha recomendado um tal de bear bell e eu não tinha nada. Em alguns momentos cheguei a ficar tenso com relação a isso, mas só encontrei raposas e um bando de cateto (porco do mato). A luta contra o sono seguia intensa até que o sol apareceu.
Caminhava forte em direção ao Silentabor, Checkpoint do km 95 e o astro rei me iluminou dando o pouquinho de energia que me faltava. 7 km de descida e mais 8 até a chegada. Faltava pouco. Decidi forçar e corri o máximo que podia nos 7km. O relógio me dizia que era possível chegar com menos de 22 horas. Quase cheguei a me arrepender dos preciosos minutos que perdi discutindo comigo mesmo, caminhando em descidas ou parando para me alongar. Corri. Lembrei dos treinos, lembrei da meia maratona da minha linda e tudo o que eu falo pra ela quando ela sente dor correndo. Corri. Cheguei no km102 e daria tempo para menos que 22 horas quando senti uma dor além do normal no adutor da perna esquerda. Na verdade já estava muito encomodado com assaduras e agora essa dor. Esqueci das 22 horas e caminhei o mais rápido que pude. Cada passo a mais era um a menos e ao avistar o Checkpoint Cepno sorri alegre com o desafio superado.
Mais uma Ultra Trail Run na conta! Os pontos para UTMB já estão computados, resta torcer pelo sorteio.
[pullquote align=center]
[/pullquote]
Resumindo
- O esporte de endurance não é nenhum absurdo. Qualquer um que decidir se dedicar em uma preparação cognitiva, psicológica e psicomotora é capaz de concluir um desafio como esse;
- A preparação material, principalmente no tocante a alimentação, é fundamental para o sucesso;
- A Eslovênia merece uma visita, um país repleto de belezas naturais;
- A infra-estrutura da prova foi um ponto alto do evento; e
- O povo esloveno é sensacional, muito carinhoso e atencioso.
#ficaadica
- Guest House do Marko em Bled: marko@matoh.si;
- Ćevapčići – um prato à base de carne frita típico dos Balcãs. Facilmente encontrado por todo o país;
- Torta Ljubljana, um café localizado nas proximidades do Mercado Central de Ljubljana. Tem uma torta tradicional deliciosa.