Transformando sonhos em realidade
Como expliquei no texto sobre o Ultra Trail du Mont Blanc, estou vivendo o processo de construir um sonho. Alinhar na largada do UTMB povoa meus pensamentos desde que ouvi sobre a prova. Após duas tentativas frustadas (2015/16) estar lá na largada de 2017 agora só depende de mim. A tarefa: somar 15 pontos em 3 provas diferentes em 2015 e 2016. Ano passado corri a SLO 100 e a primeira desse ano foi o Desafio Extremo Estrada Real.
Ultramaratona na Estrada Real
O Desafio Extremo Estrada Real é uma ultramaratona na Estrada Real, com 106 km de distância, largando na histórica cidade de Sabará e chegando na famosa Ouro Preto.
Correr essa ultramaratona na Estrada Real foi descobrir várias novidades. Apesar de não ser iniciante na distância (desde 2012 corro ultra trail) seria minha primeira vez em provas de estradão de terra. Até então eu estava acostumados com provas de montanha. Outro fato novo era a possibilidade de correr com um carro de apoio. Foi aí que eu tive o insight que modificou completamente o prazer dessa corrida.
Eu tenho sérias dificuldades de transmitir o que sinto nessas corridas para as pessoas. A Bia sempre me perguntava como era, como funcionava isso, aquilo e eu não sabia muito bem explicar. Com a oportunidade de correr com apoio resolvi chamar pessoas que me perguntavam sobre a prova, que curtem aventuras e esporte para correrem comigo. Funcionaria da seguinte forma: O carro de apoio, com minha alimentação, roupas e alguns acessórios iria percorrer o caminho e os meus amigos se revesariam correndo comigo alguns dos 106 km. Inicialmente o time Sua Casa é o Mundo seria: Eu, Bia, Vi, Leandrinho, Marcelinha e Carol Chatonilda. Mas por obrigações profissionais as duas últimas não conseguiram ir e o Vi escalou o Daniel pra essa furada.
Planejamento
As montanhas alterosas nos reservaram um percurso bem característico. Conversando com a ultramaratonista mineira Lu Aragão, antes da prova, ela indicou que seria interessante mandar bem nos primeiros trechos, visto que a altimetria da segunda metade da prova seria mais complicada. Foi assim que tracei a estratégia da prova e convidei meu time para um briefing na noite de sexta.
Percurso e Altimetria
Nossas premissas eram: O Vi tinha um compromisso e teria que sair no final da manhã; o Leandrinho tinha outro compromisso e chegaria no final do dia, acompanhado do meu pai e das respectivas namoradas; no trecho Sabará-Raposos, Raposos-Honório Bicalho e em alguns km entre Glaura e São Bartolomeu o carro não conseguiria acompanhar. Nesses momentos eu correria com a mochila de hidratação com água e gatorade, repondo de 45 min em 45 com gel de carbo/proteína.
O Vi correria os 24km iniciais até Honório Bicalho, depois seria a vez da Bia que faria entre 20 e 30km. Na sequência o Daniel iria correr o quanto desse. O Leandrinho chegaria em Glaura e acompanharia até a chegada. Quem estivesse no carro, dirigiria e iria entregar água/gatorade de 15 em 15 min e de 45 em 45 min batata cozida e proteína, endurox ou gel.
A prova
A largada foi em frente a igreja do Rosário de Sabará. Cheguei na hora. Mas bem na hora mesmo, 3 minutos antes e nem participei da foto oficial. Trotei para a linha, alinhei e já foi sinalizada a buzina. O Vi me acompanhava e inciamos conservadores. O pace girava em torno de 8 min/km. Era engraçado perceber a vontade dele de acelerar, mas eu lembrava de um treino de 4 horas que fiz com a Bia, onde acelerei e acabei quase me lesionando. A medida que trotávamos o corpo foi esquentando e o pace começou a baixar. Nas subidas muito íngremes a gente caminhava e o tempo passou rápido. Quase chegando em Raposos encontramos uma descida bem íngreme, forcei um pouco e ele sentiu o joelho. Comecei a me preocupar. Que furada que eu estava colocando meu primo. Dos 10 km da lagoa pra 20 e tal na Estrada Real, preferi respeitar e a gente acabou concluindo que os 12km já tinham mostrado pra ele como essa brincadeira é viciante.
Passei por Raposos bem, sentia que estava no primeiro terço da prova, mas não queria forçar. Me pesei, para testar a minha suplementação, e segui. O segundo trecho foi o mais maneiro da prova. Bia, Vi e Daniel tiveram que fazer um caminho alternativo para Honório Bicalho. Nós, corredores, subimos saindo de raposos e entramos num single track muito gostoso de correr. Um bom trecho plano, com a trilha bem marcada e um cheiro forte de mata úmida. Cruzamos alguns rios e morros e seguimos para Honório Bicalho. O único porém foi que as bikes (era uma prova de corrida e de bike no mesmo trecho e até agora eu não entendi porque as bikes largaram depois) começaram a me alcançar e vira e mexe eu tinha que sair da trilha pra galera passar. Não tive nenhum problema com isso, inclusive a vibe da galera era muito boa, mas parar de correr pra bike passar numa prova de 106km não é legal não.
De Honório Bicalho para frente minha pacer seria a Bia. Ela corre no asfalto cerca de 10 km pra 5 alto, 6 min/km. Pegamos um trecho plano e seguimos variando entre 6 alto, 7 min/km. A corrida estava boa e a nossa conexão estava incrível, até que começaram as subidas. hehehehe. Teve uma hora que olhei pra ela e vi o rosto todo vermelho. Pensei: minha flor está fazendo um esforço da p… e com 9km ela passou o “bastão” pro Daniel.
Foi a melhor decisão que poderíamos tomar. Nesse momento o Daniel e o Vi estavam bem enrolados como apoio. O carro estava uma bagunça e era uma atividade nova pra ambos, logo, estava meio truncado. Quando a Bia assumiu o carro virou um fast food de gatorade, água e suplementos.
O Daniel entrou bem, seguindo meu ritmo e entendendo o processo da ultra. Seguimos por cerca de 20 km trocando ideias e curtindo aquela tarde agradável. Um fato inesquecível foi quando ele perguntou pra uma senhora debruçada na janela a distância para a próxima cidade e nós ouvimos: “Vixe meu filho, até lá dá umas 2 léguas!”
O GPS estava nos ajudando, já estava chegando a marca dos 50 km e eu ainda corria confortável. Quando deu 51 pedi pra Bia andar 2km e preparar o chão pra eu deitar. Acho que na nossa história como casal esse foi o momento que eu mais amei a Bia. Ela colocou um lençol na grama, num lugar que estava fazendo um sol gostoso, preparou um Endurox geladinho, gatorade e separou pomada e spray. Deitei igual neném gordinho e ela massageou minha panturrilha. Troquei as meias e renovei meus ânimos e meu músculos pros próximos 53km.
Dali em diante o Daniel foi para o carro e a vida da Bia também ficou mais fácil. Àquela altura ela já estava exausta de dirigir, pegar água, bastão, comida, meia, luva e tudo que minha cabeça fértil pedia. Correr com apoio é muito diferente mesmo. E muito mais fácil. O problema é se acostumar com essa ideia. No meio do caminho tinha um atoleiro. Num momento inesperado eu iria correr com a mochila de novo. A Bia arrumou voando enquanto o Daniel estudava se dava pra passar. Barro! Muito barro! Eles teriam que retornar e assim eu segui. De repente olhei para o céu e me lembrei que a lanterna ficara no carro. A noite se aproximava, eu estava sem apoio, sem lanterna e sem saber quando os encontraria. A vantagem é que eu estava exausto e pensar nesse pequeno problema me ajudava a não perceber o passar do tempo. Encontrei um carro de apoio de outra equipe, garanti uma lanterna se não os encontrasse e segui aliviado. Mais alguns minutos e eles chegaram pra meu alívio total.
Nessa batida cheguei em Glaura antes de escurecer. Superei bem minhas expectativas e já estava bem feliz quando ouvi a voz do Leandrinho chegando com meu pai. Chegou o reforço para o trecho noturno. Sorri aliviado, a essa altura a Bia e o Daniel também já estavam exaustos.
O Leandrinho chegou animado para correr. Saímos da cidade em direção a última trilha do percurso e ele estava maravilhado com aquela atmosfera. Começamos o segundo trecho mais maneiro da prova, com uma trilha fechadinha que saía em um pasto de onde víamos as últimas luzes do dia indo embora. Ligamos as lanternas e seguimos trotando pela trilha. Essa hora eu já comecei a sentir. Errei a alimentação ficando mais tempo do que o planejado sem ingerir nada e minhas forças começaram a diminuir. Ele acabara de chegar e achava que trotando mais a frente estava me motivando, “me puxando”. Não funcionou bem e eu comecei a experimentar as confusões mentais que encontro no ultratrail. Em um insight me liguei: Bem vindo, nego, começou a sua prova!
Quando terminou o trecho de trilha e encontrei novamente a Bia, a dose de Endurox e algumas palavras de carinho me reanimaram, mas começava o trecho da maior subida da prova. Já era noite, fazia bastante frio e o meu pacer, Leandrinho, resolveu ir pro carro. A essa altura eram dois carros me acompanhando. O da Bia que ia mais a frente, parando de 2 em 2 km (ela e o Daniel a essa altura já estavam esgotados e dormiam preciosos minutos em cada parada) e o carro do meu pai que me seguia iluminando o caminho. O Leandrinho ficava num entra e sai danado do carro. Ora ele me motivava falando algo do carro, ora ele aparecia trotando lá na frente. Eu acelerava pensando que era alguém e era ele, foi numa dessas que um corredor se aproximou, eu brinquei chamando para me acompanhar até que escuto alguém bufar “to no meu limite, não dá pra acelerar”. Tomei um susto e quem acelerou fui eu. Comecei a correr na subida. Nem eu mesmo acreditava.
Chegando no cume só faltaria descer para Ouro Preto. Cerca de 8km me separavam da linha de chegada quando o Daniel voltou a correr comigo. Encaixamos um pace legal e corremos para a Praça Tiradentes. Aí foi só alegria. Com 15h e 15min cruzamos a linha de chegada na quarta colocação!
Resumindo
- Duas pessoas fundamentais no processo de preparação para uma ultra: treinador e nutricionista. No meu caso, mais que recomendo o Junior Nemitz, e a melhor nutricionista esportiva que conheço, Erica Santinoni;
- Muito mais importante que estar bem fisicamente é estar com a cabeça em dia;
- Pequenos detalhes fazem muita diferença em grandes distâncias (meias, comidas, bolhas, etc);
- Desafio Extremo Estrada Real é uma boa prova para iniciar. Tem uma taxa de inscrição justa e a possibilidade de correr em equipe, se revezando; e
- Foi uma festa linda e adoramos participar.