Após realizar dois dias de passeio de veleiro no litoral do Rio de Janeiro o passo foi maior. Muito influenciado pelo meu parceiro de aventuras, Zé, garantimos nosso lugar num veleiro para, durante 15 dias, navegar pela Terra do Fogo/ Patagônia. Passando pelo Atlântico Sul, Estreito de Le Maire e Canal de Beagle, uma trip inesperada que se apresentou como uma boa aventura.
O experiente capitão do barco estava realizando o Desafio Cabo Horn. Saiu da cidade do Rio de Janeiro, velejou até Ushuaia e de lá passou pelo Cabo Horn para voltar à cidade de origem. Uma das maneiras de financiar era oferecer o serviço de travessias oceânicas. Uma atividade onde os clientes (nós) pagam por um lugar na tripulação por determinado período de tempo.
O acertado é que nos encontraríamos com ele em Punta Arenas, no Chile, e navegaríamos até Ushuaia. Não foi o que aconteceu, encontramos um roteiro bem mais interessante e maneiro.
A trip
Compramos passagens de avião do Rio de Janeiro para Punta Arenas no Chile com retorno saindo da cidade argentina de Ushuaia. A previsão inicial era encontrar o veleiro em terras chilenas e navegar para o sul, passando pelos estreitos canais até chegar a Ushuaia. Porém, diversos imprevistos ocorreram no Desafio Cabo Horn atrasando o veleiro.
Na data de nossa chegada a Punta Arenas ele encontrava-se ancorado na pequena cidade de Puerto Santa Cruz. Uma pequena cidade que cresceu as margens de uma pequena baía onde barcos se abrigavam dos fortes ventos daquela região. Localizada na província de mesmo nome, ao norte do Estreito de Magalhães, fica a 2 horas de ônibus da capital da província, Rio Gallegos.
A logística para chegar lá não era tão simples. 510 Km mais uma fronteira nacional separam as duas cidades.
De Punta Arenas pegamos um ônibus para Rio Gallegos. De lá, outro para Puerto Santa Cruz. Porém, devido a diferença de horários de partida dos ônibus, foi uma viagem que durou um dia inteiro. Saindo de Punta Arenas por volta de seis da manhã, chegando em Puerto Santa Cruz no entardecer.
O primeiro contato com o veleiro foi presságio de boas histórias. Levamos para a praia todas as bagagens e alguns mantimentos e começamos as idas e vindas de bote para embarcar todo material.
Eu estava muito feliz de viver aquela oportunidade e podia ver que o Zé compartilhava esse sentimento comigo. Ventava bastante e não era tão simples realizar uma tarefa corriqueira como embarcar e desembarcar materiais de um bote. Sabia que dias interessantes para meu autoconhecimento estavam por vir e gostava da ideia de viver algo completamente diferente do que eu já experimentara. Para terminar aquele belo dia me deparei com um fim de tarde que será difícil de esquecer, um pôr do sol de tirar o fôlego.
O veleiro
O veleiro tinha 54 pés, dividido em cabine de proa, cabine de popa e salão. A cabine de proa o comandante dividia com o irmão, o salão, com duas camas era ocupado pelo Zé e pela amiga, na cabine de popa eu ficava numa cama lateral, uma senhora no meio e na outra lateral o experiente velejador. Após estabelecido onde cada um se instalaria fomos divididos em três grandes grupos. Cada inexperiente com um velejador experiente. Assim, nos revezamos ininterruptamente no leme do barco. No começo da viagem eu não queria descer em nenhum momento. Ficava observando e tentando entender tudo. O sistema das velas, como direcioná-las para obter a melhor velocidade com determinado vento. Vento de proa, popa e través. Como era feita a orientação. GPS, piloto automático, spot. Estava fascinado com aquela atmosfera quando alguém gritou para pegar a câmera. Eram os golfinhos!
Na verdade não eram golfinhos e sim um "primo" deles, as Toninas. Uma espécie regional, bem parecida com os golfinhos, porém que tem o branco como cor predominante do corpo. Elas eram várias, se deslocavam em um grande grupo que nos acompanhou durante longas horas. Nadavam à frente, dos lados, circundavam o barco fazendo acrobacias e mergulhando. Foram várias e várias milhas náuticas nos acompanhando e tornando ainda mais fascinante aquele momento. Eu, como uma criança que acaba de ganhar um presente, não sabia o que fazer. Filmava, fotografava, admirava, filmava de novo. E assim se foram longas horas observando um verdadeiro espetáculo que aqueles animais realizavam com maestria.
As tarefas à bordo também eram divididas, porém não tinha nenhuma regra bem definida. Na hora da refeição alguns preparavam os alimentos, outros lavavam as louças.
Confesso que preferia a parte de preparar do que a das louças. Não tinha muita opção. Era sempre um carboidrato com algum molho. Tirando a vantagem de ter pia com água, fogão e panelas grandes, cozinhar era bem parecido com os acampamentos de outras andanças. Existia na pia uma válvula que separava a água salgada do mar e a água doce de um tanque. Porém, não estava funcionando muito bem e as primeiras refeições vieram "salgadinhas" hehehe. Mas logo resolvemos esse problema cozinhando com água mineral.
À medida que o tempo passava, o veleiro avançava e as coisas ficavam mais naturais para mim. Comecei a gostar daquela rotina e o meu companheiro de turno era uma pessoa excepcional. Encaramos sol, chuva, frio e até um calorzinho e ele não perdia o humor. Teve uma noite que eu apelidei de noite do contra. Estávamos com vento contra, corrente contra, frio contra, sono contra e até o GPS contra. Navegamos longas horas com a setinha daquele bendito aparelho apontando para trás. Era cômico, a proa apontava para o Sul e a setinha para o Norte. Apenas no dia seguinte pela manhã fomos entender que de fato estávamos navegando para o Sul, mas como o vento e a corrente estavam para o norte, não avançamos e sim retrocedemos algumas milhas náuticas.
Lição para a vida
Eu já estava me amarrando em velejar. Já era capaz de sonhar em viver à bordo navegando pelos sete mares quando um fato me fez repensar estar ali, à bordo daquele veleiro. Já era tarde da noite do terceiro ou quarto dia quando o vento aumentou consideravelmente.
Não sei precisar a que intensidade chegou porque eu não entendia muito bem aqueles aparelhos, mas o número sessenta não me sai da mente quando lembro desse dia. 60 nós é muita coisa, eu sei, mas como ventava muito eu chego a acreditar que poderia ser isso tudo. O meu companheiro de turno decidiu rizar um pouco as velas, para velejar, em segurança, com menos pano. Isso significava ir mais devagar em prol da segurança. O barco estava rápido e isso era perceptível pelos movimentos que ele realizava e o comandante resolveu vir verificar o que ocorria. Ao observar que as velas não estavam içadas em sua totalidade teve um surto. Começou a gritar e a xingar o irmão, tirando-o do leme. Navegou à sua maneira, com os panos todos em cima, e enquanto o vento não diminuiu não largou o leme.
Fiquei quieto, com os olhos arregalados, sem acreditar na cena que presenciara e tirei daquele momento uma importante lição. Uma regra que tomo como essencial para minhas aventuras daquele dia em diante. Qualquer atividade na qual a minha vida for depender da habilidade de alguém e que o convívio, por um período predeterminado seja necessário, é importantíssimo que eu conheça a personalidade e o temperamento dessa pessoa. Pois, existem atividades, particularmente as de maior risco, que exigem um bom ambiente para as coisas fluírem em segurança.
Mudança de planos
Devido as condições climáticas a rota teve que ser refeita e o comandante decidiu chegar a cidade mais austral das Américas pelo Leste, passando pela Isla de los Estados, Estreito de Lemaire e Canal de Beagle. Mais uma lição colhida na observação de tudo que ocorria e das condutas que eram tomadas: o respeito a natureza, as condições de nossos equipamentos e daqueles que nos acompanham é fundamental para o sucesso daquilo que nos propomos a fazer. O planejamento é fundamental para o sucesso das empreitadas, mas a calma, paciência e sabedoria ao decidir perante adversidades são indispensáveis quando dependemos das condições da natureza. E sinceramente pela oportunidade de conhecer esses três importantes pontos da navegação mundial eu achei ótima aquela mudança de planos.
Isla de los Estados
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A primeira parada, após cinco dias de navegação, foi na Isla de Los Estados, na conhecida enseada de Puerto Hoppner. A entrada desse espaço não é nada fácil, porém, nosso habilidoso capitão não teve problemas para, na maré baixa, driblar as pedras que dificultavam a manobra. Nossa primeira tarefa era ancorar o barco, realizando um sistema de três cabos que garantiriam segurança para nossa casa, independente das condições climáticas. A ilha é um local lindo, de beleza muito singular. Vivemos agradáveis horas de terra firme. Exploramos de todas as formas. Esticamos os cabos com o bote, deixando o veleirinho bem ancorado; escalamos as pequenas montanhas que se estendiam no alcance de nossas vistas; percorremos algumas trilhas, por vezes abrindo mato, numa vegetação completamente diferente das que conhecíamos e acabamos nos deparamos com um belíssimo lago que nos deixou empolgados e maravilhados. Nadamos como crianças felizes por ter água doce em abundância. Reabastecemos nossa água percebendo uma leve coloração esverdeada da vegetação que deu um sabor especial àquela água. Tinha um riozinho que ligava o lago à agua salgada da enseada e na foz desse riozinho encontramos os melhores mexilhões que já experimentei na vida. A parada na Ilha dos Estados foi um importante ponto após aqueles cinco dias, intensos, da primeira experiência da vida à bordo.[/span8][span4]
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Estreito de Lemaire e Canal de Beagle
O Estreito de Lemaire é um pequeno trecho marítimo entre a Isla de los Estados e a porção mais oriental da Terra do Fogo. Foi descoberto por Jacob Le Maire no início do Séc XVI como alternativa para navegar do Atlântico para o Pacífico e vice versa. Passamos por ele sem muitas complicações, pois permanecemos ancorados na Isla de los Estados durou até que as condições para que a travessia do Lemaire fosse realizada velejando em
segurança. As condições, neste trecho, deixaram de ser adversas e a viagem passou a transcorrer com maior tranquilidade. Um ventinho constante soprava, embalando o veleirinho sem fortes emoções. No fim do dia, já no Canal de Beagle, paramos numa enseada que tinha uma casinha com bandeira Chilena. Após realizarmos contato através do rádio recebemos a orientação que poderíamos ficar ali ancorados mas não tínhamos autorização para desembarcar.
No dia seguinte seguimos pelo Canal de Beagle, indo para oeste. O Estreito de Beagle liga o Pacífico ao Atlântico, cortando o arquipelágo da Terra do Fogo no sentido latitudinal, separando a Ilha Grande da Terra do Fogo de pequenas ilhas. Pela proximidade que navegamos da costa passamos a observar melhor a vegetação admirando a beleza da patagônia. Na sua porção mais oriental o canal separa a Argentina, ao norte, do Chile, ao sul. Também é notável o aumento de fluxo de embarcações, encontramos diversos veleiros, alguns repetidas vezes.
Já nas proximidades de Ushuaia nosso capitão resolveu explorar mais uma enseada e acabamos, por sorte, nas proximidades da Estancia Harberton. Um lugar muito prazeroso, por terra há 60km da cidade mais austral do mundo. A Estancia é a mais antiga da terra do fogo argentina. A história de seu fundador se confunde com o surgimento de Ushuaia e nos tempos atuais funciona aberta ao público durante os verões. O veleiro foi ancorado em uma enseada há quarenta minutos de caminhada da Estancia, assim, nossa primeira atividade foi desembarcar e ir conhecê-la. Fomos muito bem recebidos e ávidos por comida e bebida apreciamos um jantar com carne de cordeiro e XXXX, uma saborosa cerveja local. Quando o pessoal já se organizava para voltar para o barco eu conheci um brasileiro que estava dando a volta na América Latina de moto e parou por um tempo para trabalhar em Harberton. Ele me contou sobre um projeto de atravessar o Canal de Beagle numa canoa indígena e lá fui eu me meter em mais uma aventura de papo de mochileiro. No dia seguinte passamos observamos alguns pinguins nas proximidades da Isla Martillo e seguimos para Ushuaia.
Ushuaia
Chegar em Ushuaia foi bom. Senti uma forte emoção de "fim da linha". Viver aquela experiência com um grupo tão heterogêneo me fez refletir muito sobre diversos aspectos da vida. Agora era hora de desfrutar o potencial turístico daquele pico. A cidade mais austral do mundo é muito bonita. Capital da Província da Terra do Fogo, tem a origem do nome no idioma indígena Yagan: ushu fundo aia baía. Os atrativos que mais me chamaram atenção foram o Glaciar Martial e o Parque Nacional da Terra do Fogo.
Lições Aprendidas
Em tempo onde é possível viajar com clicks, deslizar de dedos e movimentos de mouse, se permitir sair da zona de conforto e experimentar o vento, o cheiro e o tato não é tarefa tão simples. Foi uma experiência completamente nova e fora do meu imaginário. Nunca sonhei em viver no mar, nem tampouco tive proximidade com alguém que o fizesse. Adorei. Voltei sonhando com o meu barco. Convivi com pessoas de diferentes idades, cultura e personalidades. Observei bastante, aprendi muito. Fiz algumas amizades, ampliei meu horizonte e descobri mais uma paixão. Gratidão enorme ao Universo por me permitir isso.